A bolha que nos protege
O espaço social onde convivem pessoas instruídas com inclinações de esquerda e atitudes liberais nos costumes, a bolha, nos protege da conversa sinistra da extrema direita e garante a sanidade
Tenho escutado, com alguma frequência, amigos e pacientes falarem com desdém daquilo que chamam de “nossa bolha”, o espaço social onde convivem pessoas instruídas com inclinações de esquerda e atitudes liberais em termos de costumes.
Os críticos, geralmente autocríticos, dizem que esse grupo é estatisticamente minúsculo e não representa o conjunto da sociedade brasileira em termos de ideias ou de vivências. Logo, concluem, o que se pensa e se faz na bolha, ainda que louvável, não tem importância. São gestos inúteis, performances vazias que têm por finalidade inconsciente reafirmar um lugar de prestígio no interior da própria bolha, sem efeito possível no Brasil real - aquele lugar mítico, diverso e periférico onde viveriam os verdadeiros brasileiros.
Eu discordo espetacularmente desse ponto de vista, por duas razões.
A primeira é que a classe média instruída tem tido, historicamente, um peso enorme em termos de política, cultura e comportamento no Brasil. É desse grupo social, dessa bolha ampla, que saíram os militantes brancos da campanha pela abolição da escravatura, no século XIX, assim como os grupos de resistência política à ditadura militar, no século XX. O movimento estudantil, uma expressão da classe média, foi público e artífice de transformações profundas na música, no teatro e no cinema brasileiros. Sem falar da política, da liberdade sexual e do feminismo, que, para surpresa de ninguém, caminham juntos. Desse mesmo caldo de cultura, dessa mesma bolha social, saiu gente como Gilberto Gil, Zé Celso e Marilena Chauí, para ficar em três expoentes da velha geração. Ou Kleber Mendonça de Barros, Vladimir Safatle e Vera Iaconelli, para falar de nomes recentes.
Embora parte de uma minoria social, o que essas pessoas falam e produzem tem influência na maneira como os brasileiros como um todo percebem o mundo. Imaginem o vazio de ideias que seria se essas pessoas tivessem desistido de atuar, movidas pela convicção equivocada de que seus pontos de vista - por uma questão de classe ou de cor - não representam ninguém ou não interessam a ninguém.
A segunda razão pela qual eu defendo a bolha é puramente egoísta: ela protege a minha sanidade. Imagine viver num mundo onde eu teria de conversar todas as manhãs com gente que é contra a aplicação de vacinas ou que apoia de forma entusiasmada as execuções policiais na periferia das grandes cidades. Eu ficaria maluco.
Ainda que a bolha contenha uma amostragem limitada de cor e de origem, nela estou livre da conversa sinistra da extrema direita. Posso trocar comentários horrorizados sobre o genocídio em Gaza sem que alguém me diga que está tudo bem, porque, afinal, todos os palestinos são terroristas, incluindo mulheres e crianças. Também posso expressar a minha indignação pela maneira como os jagunços de direita trataram a ministra Marina no Congresso sem risco de ouvir que ela é uma “esquerdista vagabunda”.
Se os cínicos e os violentos ganham cada vez mais espaço público, e a ignorância planejada prolifera de forma exponencial nas redes sociais, é importante ter lugares de confiança – como a bolha - onde se pode tentar pensar livre do racismo e do machismo, da homofobia e dos preconceitos de classe. Livre, sobretudo, do fascismo, que é a síntese política de tudo isso.
E há uma novidade importante no cenário: graças a políticas públicas como as cotas raciais, e à distribuição de renda promovida pelos governos de esquerda, a bolha da classe média instruída vem se tornando racialmente mais diversa nos últimos anos, como sempre foi a base da pirâmide econômica e social brasileira. Na bolha já se encontram estudantes e intelectuais negros, além dos artistas que sempre estiveram presentes. Estimulada por essa nova presença, a bolha, que sempre foi sensível à defesa dos direitos dos homossexuais e das mulheres, começa finalmente a discutir a sério o racismo, assim como as respostas que o povo negro e indígena deu a ele, forjando no Brasil uma civilização diferente da europeia, potente à sua própria maneira e potencialmente melhor.
Tal como eu entendo, a conversa inter-racial no interior da bolha – e fora dela, claro - está apenas começando, e vai produzir resultados dos quais os livros de Jeferson Tenório, os filmes de Gabriel Martins e as peças de Clayton Nascimento são apenas uma pequena amostra.
Enfim, estar na bolha não é uma resposta aos problemas do mundo e muito menos uma forma de revolução, mas parece uma solução pessoal, uma defesa temporária contra o massacre psíquico imposto por um mundo que transborda de mentiras, violência e preconceito. Sem falar do dinheiro, onipresente e todo poderoso. Quem quiser mudar a sociedade e achar um caminho para salvar o planeta terá de sair da bolha e criar laços fora dela com a maioria dos brasileiros excluídos. Essa é a tarefa da política e da militância, do ativismo cultural também. Mas essa tarefa não será concluída, penso, se o pessoal instruído com inclinações de esquerda e atitudes liberais em termos de costumes – a gente da bolha – decidir que não tem nada a dizer ao mundo e renunciar à própria voz.
A mudança que tem de ser feita é tão enorme, tão vasta, requer tanta energia, que não pode dispensar nenhum grupo social que dela queira participar – sobretudo um grupo que, historicamente, tem ajudado mais do que atrapalhado as grandes lutas sociais que se travaram no Brasil nos últimos 100 anos, e ainda antes.
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Ivan Martins é psicanalista e escritor, autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro”.